sexta-feira, 26 de março de 2010

E se eles forem inocentes?

Sexta, 26 de março de 2010, 08h01
Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

Estimados leitores, aqui da frente do Fórum de Santana envio a todos um abraço afetuoso enquanto o circo humano, ou nem tanto, se desenrola aqui fora, e o drama real, duro e sem solução se desenrola lá dentro.

Do lado de fora temos curiosos, tolos, produtores de cartazes com mensagens lacrimosas, temos o inevitável pastor evangélico, esse tão insuportável que foi expulso no terceiro dia, antes que até Cristo ressuscitasse para parar a cantoria. Temos a imprensa, precisando dar alguma coisa, qualquer coisa de volta ao seu público, ávido por detalhes desse drama nacional. Temos vendedores, já que isso também não deixa de ser um templo, temos a tristeza de ver os que entram, e ficamos nos perguntando como vão sair, se vão sair.

O mais doloroso de tudo isso é que esse drama não se encerra aqui, nem se encerra jamais. Nada vai mudar o fato irreversível de que uma menininha foi barbaramente assassinada e que isso não costuma ter volta. Nada muda o fato de que várias pessoas, ou pelo menos várias vidas são extintas ao mesmo tempo. Temos a mãe, a segunda maior vítima, não importando quem tenha cometido o crime. Temos os acusados, que por sua vez têm filhos, que há dois anos se tornaram órfãos de fato por conta do crime ou da tragédia do qual, da qual eles não têm a menor culpa. Temos os avós, cujas vidas são redesenhadas por um acontecimento como esse, em um momento de suas vidas em que pouco têm a fazer a não ser tentar remendar os seus dias em busca do que mesmo?

Temos um júri e temos um juiz, com uma decisão duríssima a tomar nos próximos dias, sabendo muito bem o que o país espera.

Eu acho que o caso da menina Isabella doeu em todo mundo de uma maneira especial, assim como o menino João Hélio nos machucou a todos. No caso do menino, a causa do crime foi o absurdo e a demência dos dementes de plantão, seres tão desconstruídos que, ao cometerem barbáries, não nos surpreendem por serem eles os culpados, mesmo que nos surpreenda, como nesse caso, a intensidade da barbárie.

No caso da menina, os possíveis culpados são gente que habita a nossa visão do que seria a normalidade, e com a qual conseguimos nos identificar, e, talvez por isso seja maior a nossa incompreensão ou medo de compreender. Quando olhamos para eles, o que pensamos, acho, é que se eles puderam, se o fizeram, será que poderíamos nós mesmos fazer algo assim? E isso, estimados leitores, assusta. O quanto normais somos, afinal? Do que somos mesmo capazes, nas situações extremas e nas quais ainda não fomos testados? Qual o espaço de escuridão que habita as partes menos conhecidas da nossa alma? Somos bons, somos maus, e quanto de cada?

Enquanto o drama se desenrola, e uma ordem se estabelece, eu deixo de pensar no que aconteceu, e que não tem jeito, e penso um pouco no que vai acontecer, de qualquer jeito: um júri vai dar um veredito. Pessoas normais, como você, estão ali sentadas, olhando para o que acontece e tentando chegar a uma, e apenas uma conclusão: existem provas, além de qualquer dúvida, que afirmem que os acusados são culpados do que são acusados, ou não? Não é necessário provar que sejam inocentes para que eles saiam livres. Basta a promotoria não conseguir provar, além de qualquer dúvida, a culpa. Não comprovada a culpa, eles são livres, mesmo que não inocentes.

"In dubio pro reo", dizia a plaquinha sobre a mesa de trabalho do meu pai juiz. Na dúvida, a favor do réu, lembrem sempre disso. E lembrem que, se forem inocentes, esses dois acusados são hoje as pessoas mais injustiçadas desse país.

Eu acho que o Brasil teve um exemplo importante da destruição produzida por um julgamento precipitado, no caso da Escola Base. O custo, terrível para os pobres donos da escola, se tornou um ganho importante para todos os acusados de crimes em nosso país. As pessoas aprenderam que não podem julgar, que precisam esperar, que devem refletir, e que todos somos inocentes até prova em contrário.

E eu vou dizer a vocês o que eu acho. Eu acho que talvez não existam provas definitivas e capazes de estabelecer a culpa dos dois de maneira acima de dúvidas. Acho que, quando promotor e delegado falam com firmeza demais, alguma coisa pode estar frágil. Acho que houve erros em excesso, e que o caso da Promotoria talvez não se sustente tão firmemente quanto se faz necessário para que as pessoas desse júri possam decidir com a certeza e a tranquilidade de que precisam, para afirmar a culpa.

E acredito que a melhor forma de prestar nossa homenagem a uma menininha é buscar da melhor maneira a explicação para a sua morte, ao mesmo tempo em que respeitamos da maneira mais dura e completa o processo legal, o único que pode nos proteger dos maiores erros, aqueles cometidos nos momentos em que temos tempo, calma e o direito, para refletir e julgar.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

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